Notícia
Um míssil iraniano matou a família de Kasem em uma cidade de maioria árabe em Israel. A reação lançou luz sobre questões sociais profundas. Kasem Abu al-Hija perdeu a filha, duas netas e a tia em ataque de mísseis iranianos que atingiu cidade de maioria árabe em Israel
Tom Bennett/BBC
"Estou com muita raiva", diz Kasem Abu al-Hija, de 67 anos.
No sábado (14) , quatro membros da sua família foram mortos quando um míssil iraniano atingiu sua casa no norte de Israel, derrubando a construção de concreto em cima deles.
Livros, roupas, brinquedos e partes de corpos foram lançados na rua, segundo testemunhas.
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A rua inteira ficou na escuridão quando o míssil atingiu o local. As equipes de resgate conseguiram localizar os corpos seguindo rastros de sangue.
As quatro vítimas foram identificadas como a filha de Kasem, Manar Khatib, de 45 anos, suas duas netas, Shada, de 20 anos, e Hala, de 13, e sua tia, Manal Khatib, de 41 anos.
Elas haviam conseguido chegar aos dois cômodos seguros reforçados da casa que compartilhavam — mas o míssil balístico atingiu diretamente o local.
Elas moravam em Tamra, uma cidade de maioria árabe no norte de Israel.
Minutos após suas mortes, surgiu um vídeo na internet. Ele mostrava os mísseis iranianos cruzando o céu. Enquanto desciam sobre Tamra, uma voz pode ser ouvida gritando, em hebraico: "No vilarejo, no vilarejo".
"Que seu vilarejo seja queimado", diz um grupo de pessoas, cantando e batendo palmas.
Quatro pessoas morreram quando o míssil atingiu esta casa em Tamra
Tom Bennett/BBC
"Eles cantaram pelo que aconteceu com a minha família", diz Kasem, calmamente, cercado por parentes em uma vigília.
O vídeo — que mostra israelenses entoando um cântico antiárabe comum, muitas vezes cantado por judeus ultranacionalistas — foi amplamente condenado em Israel, e classificado pelo presidente do país, Isaac Herzog, como "terrível e vergonhoso".
Mas há outros motivos pelos quais Kasem e a comunidade mais ampla de Tamra estão irritados com o que aconteceu.
Aqui — como é o caso de muitas comunidades de maioria árabe em Israel — não há abrigos antibombas públicos para seus 38 mil moradores.
Para efeito de comparação, a cidade vizinha de maioria judaica, Karmiel, com 55 mil habitantes, conta com 126 abrigos públicos.
Os moradores de Tamra há muito tempo alertam sobre essa disparidade.
Localizada no norte de Israel, a cerca de 10 km a leste da cidade de Haifa, e a 25 km ao sul da fronteira com o Líbano, a cidade tem sido vulnerável aos foguetes disparados pelo grupo libanês Hezbollah, apoiado pelo Irã. Em outubro de 2024, um foguete disparado pelo grupo feriu gravemente uma mulher.
Em Israel, cerca de um quarto da população não tem acesso a um abrigo adequado.
Mas nas localidades não judaicas, essa parcela chega a quase metade da população, de acordo com um relatório de 2018 da Controladoria do Estado de Israel, os dados mais recentes disponíveis.
"Por muitas décadas, as autoridades locais árabes receberam menos recursos do Estado em várias áreas, incluindo preparação para emergências", diz Lital Piller, do instituto de pesquisa Israel Democracy.
Quando existem abrigos, segundo ela, "são poucos, mal conservados e muitas vezes inadequados para estadias prolongadas".
A BBC entrou em contato com o Ministério da Defesa de Israel para comentar o assunto.
Os árabes israelenses — muitos dos quais preferem ser chamados de cidadãos palestinos de Israel — constituem um quinto da população do país. Por lei, eles têm direitos iguais aos dos cidadãos judeus, mas reclamam rotineiramente da discriminação do Estado e de serem tratados como cidadãos de segunda classe.
Após a Guerra do Golfo de 1990-1991, quando mísseis iraquianos atingiram Tel Aviv e Haifa, o governo israelense determinou que todos os novos edifícios residenciais deveriam conter um cômodo seguro reforçado, ou Mamad, como são conhecidos.
A maioria dos moradores de Tamra não tem um cômodo seguro, e precisa compartilhar com os vizinhos
Tom Bennett/BBC
Mas as comunidades árabes geralmente enfrentam duras restrições de planejamento, o que leva a construções não regulamentadas, e a casas sendo construídas sem o cômodo, dizem os ativistas.
De acordo com as autoridades locais, apenas cerca de 40% das casas de Tamra têm seu próprio cômodo seguro, o que faz com que a maioria dos moradores tenha que correr para buscar abrigo com os vizinhos. Em muitos casos, devido ao curto aviso prévio, isso não é possível.
"As lacunas são enormes", diz Ilan Amit, do Centro Árabe Judaico para Empoderamento, Igualdade e Cooperação (Ajeec, na sigla em inglês), que trabalha para construir abrigos em comunidades árabes. "Eu moro em Jerusalém. Todo prédio tem um abrigo antibombas. Todo bairro tem um abrigo antibombas público."
À medida que a noite cai em Tamra, os telefones dos moradores acendem simultaneamente com um alerta estridente: "Você deve ficar perto de uma área protegida".
Logo em seguida, as sirenes soam, e os moradores — recém-saídos do trauma do ataque de sábado — entram em pânico.
As mães reúnem os filhos, e as pessoas correm pela rua gritando. Várias famílias se amontoam no cômodo seguro de uma casa.
Alguns choram, outros sorriem ou se contraem de nervoso. Um homem fecha os olhos e reza. Ouve-se um estrondo atrás do outro.
A questão dos abrigos é ainda mais evidente nas comunidades árabes beduínas de Israel — muitas das quais vivem em aldeias no Deserto de Neguev que não são reconhecidas pelo governo israelense e, portanto, não têm abrigos construídos para elas.
A única vítima da escalada das hostilidades entre Israel e Irã em abril de 2024 foi uma menina de uma dessas comunidades que ficou gravemente ferida, e passou um ano no hospital depois que fragmentos de um míssil iraniano atingiram sua cabeça.
A falta de abrigos também é um problema prevalente em algumas das comunidades judaicas mais pobres de Israel em áreas como o sul de Tel Aviv.
Adel Khatib diz que Tamra não recebe tanto financiamento quanto as comunidades judaicas
Tom Bennett/BBC
Uma nova pesquisa realizada pela Universidade Hebraica revelou que 82,7% dos judeus israelenses apoiam o ataque ao Irã, mas 67,9% dos árabes israelenses se opõem. Além disso, 69,2% dos árabes israelenses relataram sentimentos de medo em relação aos ataques — e 25,1% manifestaram desespero.
"A sociedade árabe se sente negligenciada e deixada para trás", diz Amit. "Há disparidades enormes na educação e no emprego. Há disparidades enormes nos abrigos, na existência de abrigos."
Adel Khatib, um funcionário municipal de Tamra, afirma: "Desde que isso aconteceu, você pode sentir a revolta".
"Não temos acesso às necessidades básicas", acrescenta. "A maioria das comunidades árabes não tem centros comunitários ou prédios voltados para cultura e atividades."
De acordo com as estatísticas israelenses oficiais, em 2023, 42,4% da população árabe vivia abaixo da linha da pobreza — mais do que o dobro da proporção da população geral de Israel.
Nos últimos anos, houve tentativas de preencher essas lacunas. Em 2021, o governo anterior de Israel apresentou um plano de desenvolvimento de cinco anos para a sociedade árabe.
"Estávamos no meio de um grande salto no desenvolvimento socioeconômico, reduzindo as disparidades na educação, no ensino superior e no emprego", diz Amit.
Mas a atual coalizão governamental de direita de Israel, a mais linha dura da história do país, reduziu lentamente o financiamento para esse plano, redirecionando a verba para outros lugares.
Alguns destes cortes ocorreram porque o governo ajustou os orçamentos para lutar na guerra em curso em Gaza, que começou em resposta ao ataque pela fronteira liderado pelo Hamas contra Israel em 7 de outubro de 2023, no qual cerca de 1,2 mil pessoas foram mortas e outras 251 foram feitas reféns.
"Este governo está simplesmente colocando entraves para este plano quinquenal, não tornando possível implementar grandes partes dele", acrescenta Amit.
"No último ano e meio, a sociedade árabe se viu entre a cruz e a espada, no sentido de que, por um lado, está sofrendo com as políticas do atual governo e, por outro, está vendo seus irmãos e irmãs em Gaza e na Cisjordânia sofrendo por causa da guerra", afirma.
Do lado de fora das ruínas da casa da família, Mohamed Osman, de 16 anos, um dos vizinhos, desabafou: "Todo mundo está com raiva e triste".
Ele lembra de Shada, que tinha apenas 20 anos. "Ela estudou a vida inteira. Queria ser a melhor. Seu pai é advogado, e ela queria ser como ele.
Todos esses sonhos simplesmente desapareceram."
"Eles eram a melhor imagem de uma família feliz... Quando eu os imagino, imagino os pedaços deles que vi."
Em uma vigília antes do funeral, dezenas de membros da comunidade se reúnem, cumprimentam uns aos outros com apertos de mão, compartilham café e chá, e sofrem em silêncio.
"As bombas não escolhem entre árabes ou judeus", diz Kasem. "Precisamos acabar com essa guerra. Precisamos acabar com ela agora."
19/06/2025
G1